quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Vítimas do conflito na Síria são tratadas em hospitais do 'inimigo' Israel.

Soldados israelenses encaminham ferido sírio a hospital em Safed | Crédito: BBC

Hospital no norte de Israel trata sírios feridos em conflito civil
Na maternidade do hospital Rebecca Sieff, na cidade de Safed, no norte de Israel, os partos parecem um milagre menor.
No dia que a equipe da BBC visitou o local, havia ali um recém-nascido que, entre outros bebês, terá, um dia, uma grande história para contar - isso se seus pais decidirem compartilhá-la com ele.
O nome de sua mãe ou qualquer outra informação pessoal que possa identificá-la também não pôde ser divulgado. A identificação da criança teve de ser omitido: a publicação de qualquer informação pode lhe trazer sérios riscos quando ela voltar ao vilarejo onde mora, na Síria.
A mulher parecia cansada, mas feliz quando nós a conhecemos. Rapidamente, elogiou a bondade da equipe médica israelense que a havia tratado.
Ela já estava em trabalho de parto quando se dirigiu a uma maternidade em seu vilarejo natal na Síria, mas foi informada de que não poderia ser hospitalizada no local.
Preocupado, seu marido sabia que seria possível tratá-la em Israel. O casal, então, começou uma corrida contra o tempo em direção à fronteira entre os dois países.

Ela foi levada a um ponto dentro do território sírio onde pôde ser vista por soldados israelenses patrulhando a cerca que marca a velha linha de cessar-fogo entre os dois países.

Uma ambulância militar a levou, então, para o hospital – e ali seu parto foi feito a tempo.

Transferência
"Alguns relacionamentos floresceram entre a equipe médica e nossos pacientes. Muitos deles expressam gratidão e o desejo pela paz entre os dois países"


Oscar Embon, diretor do Hospital Rebecca Sieff.
A cadeia humanitária que possibilitou o parto envolve guias na Síria, paramédicos de fronteira, médicos e enfermeiras em Safed.
Ela foi a 177ª pessoa a cumprir essa jornada, no que já se tornou uma das mais extraordinárias subtramas da agonizante guerra civil no país governado por Bashar al-Assad.
Síria e Israel são arqui-inimigos declarados. Um estado de guerra existe entre os dois países há décadas.

Apesar disso, desde que as primeiras vítimas do conflito na Síria começaram a ser tratadas em hospitais israelenses nove meses atrás, o sistema informal de transferência de pacientes se tornou tão bem-estabelecido que alguns deles já chegam com cartas de referência escritas por médicos sírios a seus homólogos do outro lado da fronteira.

Dramas humanos
Oscar Embon, diretor do Hospital Rebecca Sieff, afirmou que "alguns relacionamentos floresceram entre a equipe médica e nossos pacientes. Muitos deles expressam gratidão e o desejo pela paz entre os dois países".
Os israelenses dizem tratar qualquer um que precise de ajuda. Isso se traduz principalmente por mulheres e crianças, mas também é possível que nesse grupo haja combatentes leais ao presidente da Síria, Bashar al-Assad, ou rebeldes jihadistas que, em outras circunstâncias, atacariam alvos em Israel.
Embon diz que a política de não discriminar entre os doentes e feridos coaduna com o que ele vê como valores de seu país e a ética de sua profissão.
"Não espero que eles se tornem fãs de Israel e embaixadores do nosso país, mas nesse ínterim espero que eles reflitam sobre a experiência deles aqui e sobre o fato de que o governo sírio diz que israelenses e sírios são inimigos", afirmou Embon.

A ajuda de Israel a pacientes sírios esconde interesses políticos, claro – afinal, esse é o Oriente Médio.
Ainda assim, apenas algumas horas dentro do hospital em Safed já são suficientes para se ter uma ideia do tamanho dos dramas humanos que ocorrem ali.
A maioria dos pacientes, no entanto, não vai dizer uma palavra sobre o tratamento – eles têm medo do que pode acontecer caso vaze a informação de que foram tratados em Israel, um país 'inimigo'.
Relações em formação

Tratamento em hospital israelense tem de ser mantido em sigilo.

No epicentro desta cadeia humanitária está um assistente social árabe-israelense que nos pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome, Faris.
Uma de suas missões é acalmar os pacientes que ficam em pânico ao se dar conta de que estão sendo tratados em um Estado inimigo.

Faris organiza o que recebe de instituições de caridade, fornecendo aos pacientes artigos de higiene pessoal e escovas de dente.
E também escuta suas histórias.
A rotina de Faris requer relativa frieza para lidar com situações de descontrole emocional – imagine ter de explicar a um menino que perdeu a visão em uma explosão que ele nunca verá novamente. Mas com os pacientes sírios, diz ele, a tarefa é ainda pior, uma vez que eles retornam para casa tão logo são tratados.

E após cruzarem a fronteira para o lado sírio, todo o contato entre as partes será perdido em meio à velha inimizade que opõe os dois países e à sanguinolência da guerra civil.
Faris reconhece que não lida bem com despedidas. As partidas doem para ele tanto quanto para quem se vai, confidenciou à BBC.
Ele aparentava cansaço quando nos encontramos, mas diz que dorme bem sabendo que tem a chance de fazer algo bom.
"Quando pessoas vêm para cá por dois meses", disse ele, "uma relação começa a se construir e ganha força com o tempo. Quando eles voltam para casa, a única parte ruim é que se perde o contato, porque a Síria vê Israel como um inimigo."

Com a escalada da miséria da guerra civil na Síria – e a decadência do sistema de saúde no país – toda semana Faris e a equipe do hospital de Safer recebem novos pacientes e novos problemas.
Os pacientes tratados, por outro lado, não podem comentar abertamente sobre a ajuda que receberam em Israel, sob pena de correrem risco de vida.
Mas, de alguma forma, a notícia de que a ajuda do lado da fronteira existe em meio à famigerada guerra civil indica que o número de sírios em busca de ajuda deve continuar a aumentar.

Kevin Connolly
Correspondente da BBC no Oriente Médio


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